Tenho 44 anos. Em 15 de Dezembro de 1996 dei o meu último caldo. Passaram-se 17 anos... Aqui contei parte da minha história...

segunda-feira, julho 31, 2006

O brutal poder do Amor

Caros amigos, cá estou eu de novo, após alguns dias de ausência provocada por afazeres profissionais.

Andei a dar uma volta pelos comentários que têm deixado por aqui, e não posso deixar passar em claro o comentário da Catarina:

“Olá, nunca consumi heroína mas é sem duvida a minha pior inimiga, o meu marido é toxicodependente e há 11 anos que tento (em vão) que ele a largue, mas cada vez é pior e nunca se injectou...tem dois filhos lindos, tem emprego, tem casa, tem carro, tem dinheiro, mas o mais importante na vida dele é o cavalo, e eu por arrasto tenho sofrido as consequências dessa. Acho que o teu blog é mto importante desejo-te muita força”

Nem sei o que te dizer, gostava, do fundo do meu coração, de te poder ajudar mas, face aos factos que relatas fico impotente para dizer seja o que for.

Já por várias vezes falei aqui do brutal poder da heroína, mas as tuas palavras fazem-me lembrar que existe de facto um poder maior, esse poder chama-se amor.

Não sei, mas suponho que seja ele que te mantém junto do teu marido, mesmo que não seja o amor por ele, será de certeza o amor pelos filhos que referes que te faz suportar tudo pelo que tens passado. Não te posso ajudar e isso deixa-me triste, apenas te posso dizer para continuares a ter força.

Eu acredito que existe sempre a possibilidade de um toxicodependente se recuperar, e que mais tarde ou mais cedo isso acaba por acontecer, por isso só te posso pedir que acredites e que mantenhas a esperança.

Sei que não é fácil, e que por vezes só apetece desistir mas se todos me tivessem abandonado eu não estaria aqui hoje. Eu só sobrevivi graças ao apoio dos meus pais da minha mulher e da minha filha que estava para nascer, filha a quem alguém apelidou de anjo que vinha para me salvar. Eu acreditei nessas palavras e por isso aqui estou.

sexta-feira, julho 21, 2006

Persistência?

“Normalmente é assim que começa o tráfico. Connosco foi assim mesmo. Tínhamos carro o que era o ideal para fazer de transporte a quem queria ir comprar e assim ganhar a "representação". Posteriormente já não havia carro e a situação invertia-se, eram os outros que nos procuravam para nos dar boleia. Chegando à conclusão que isso não era rentável e passámos a ir a Lx à boleia (100km + ou -), pela auto-estrada, todos os dias ( e às vezes 2 vezes por dia e às vezes sem dinheiro no bolso)Nunca ficámos a pé uma única vez!! Sinónimo da persistência e vontade de um toxicodependente que tudo o que quer, consegue! Deve ser das poucas qualidades que não se deveria perder ao se largar o vício não achas” Maria H

Maria, mais uma vez o teu comentário complementa perfeitamente aquilo que eu vivi e aquilo que eu senti, no entanto desta vez tenho dúvidas se persistência será a palavra correcta para utilizar.

Persistência seria se, aquilo que um drogado faz para atingir os seus propósitos fosse resultante da vontade própria, e normalmente o que acontece não é isso. O que se passa é que o poder do cavalo ou da branca é brutal, e é a necessidade de conseguir obter mais e mais para consumir que faz com que um drogado vença todas as barreiras e derrube todos os muros até satisfazer as suas necessidades.

No meu caso, a determinada altura, deixou de haver vontade própria, a minha vida passou a ser controlada por duas grandes forças, a dependência traduzida no pedido do corpo para consumir, e o medo, o medo da ressaca.

Deixo aqui este pensamento, não sei se concordas comigo, mas se calhar persistência é capaz de ser suave de mais para o que um drogado é “obrigado” a fazer para satisfazer as necessidades do vício.

quinta-feira, julho 20, 2006

Pequeno tráfico.

Enquanto esperava pelo passar do tempo e pela chegada da tal consulta de psiquiatria, era necessário continuar a alimentar o vício, o que se estava a tornar cada vez mais difícil face às dificuldades financeiras que aumentavam de dia para dia.

Os esquemas que montava para rapidamente arranjar dinheiro estavam a ser cada vez mais difíceis de elaborar e por outro lado mostravam cada vez menos resultados, uma vez que os alvos desses esquemas se mostravam cada vez mais relutantes em acreditar nas histórias que eu inventava.

Assim, a prioridade passou a estar centrada na obtenção de bens passíveis de vender aos intrujas a quem eu comprava o cavalo. Como já referi, nesta altura estava a trabalhar numa empresa onde tinha acesso diário a bens que se prestavam a esses fins, e assim os pequenos furtos passaram a fazer parte do meu dia a dia no trabalho.

Aquilo que eu procurava era sempre o que fosse mais fácil de trocar, e aqui o tabaco era de entre todos os bens o mais fácil de transaccionar, não só junto dos dealers como inclusivamente em alguns cafés e pequenas lojas lá do bairro, a cada 5 maços de tabaco correspondia um pacote ou 1000$00.

No entanto, e como é normal, nem todos os dias conseguia resolver os meus problemas por esta via, e assim foi necessário encontrar soluções alternativas.

É então que me aproximo de um dos intrujas do meu bairro e lhe disponibilizo o meu carro e a mim próprio, como motorista, para, em troca de algum cavalo, ir com ele buscar o produto que diariamente vendia lá no bairro.

Sem me preocupar com os riscos que corria, foi assim que estive durante algumas semanas envolvido no pequeno tráfico. O esquema era simples, saíamos por volta das 22 horas do meu bairro, dirigíamo-nos a Sacavém a um determinado café e a troca realizava-se ali aos olhos de quem queria ver. Um saquinho com 15 ou 20 gramas para um lado e um maço de notas para o outro, era o tempo de beber um café e estava feito.

Depois era chegar ao meu bairro, esperar um pouco enquanto o intruja fazia o corte, ou seja, adicionava algum pó que adulterava a qualidade do cavalo e aumentava o lucro, na maioria das vezes Nostan, e enchia alguns pacotes, um ou dois eram para mim.

Assim estava preparado para passar mais uma noite, normalmente a bezerrar e a pensar em como iria arranjar cavalo na manhã seguinte.

segunda-feira, julho 17, 2006

Um mês à espera...

De volta à minha história, estamos então de regresso à minha primeira verdadeira tentativa para parar o consumo. Após a consulta com a psicóloga, no mês que se seguiu, os meus hábitos em nada se alteraram, e também pouco ou nada podia, ou queria, fazer para que tal acontecesse.

Devo dizer que, olhando á distância para este período, percebo agora que o que me motivava para esta tentativa de parar o consumo não era propriamente a vontade de parar, a grande e única motivação era o avolumar dos problemas financeiros associados à escalada da quantidade consumida.

Afinal de contas, e como já o disse várias vezes, eu gostava da moca do cavalo, e o que eu procurava era, não ajuda para deixar o vício, mas sim uma forma rápida de poder controlar a questão financeira.

Tenho ideia de que, mais uma vez, não estarei a ser claro naquilo que quero transmitir, mas vou tentar explicar melhor.

Lembro-me que, por esta altura, a ideia de nunca mais voltar a tocar no cavalo era uma coisa que eu não concebia. O meu pensamento sempre foi o de que, iria sim libertar-me da dependência mas continuaria a consumir só que mais ocasionalmente. Ou seja, tinha finalmente percebido que já havia perdido o controlo, mas ainda não tinha desistido de dizer a mim mesmo que haveria forma de o recuperar.

Ou seja, eu não queria perceber que a heroína era mais forte do que eu, e que nunca seria possível eu ter um consumo controlado. A minha preocupação ainda não era largar o vício mas sim tentar de alguma forma controlá-lo.

Como se verá nos posts seguintes, o que aconteceu foi sempre aumentar o descontrolo e nunca o contrário.

PS- Agradeço do fundo do coração todos os comentários recebidos, não sei até onde este projecto nos vai levar, mas ele só tem sido possível, em parte, graças às pessoas que eu sei me têm acompanhado nestes relatos. Obrigado por me fazerem saber que não estou sozinho.

E-mail

Já está disponível o link para uma caixa de correio onde todos me podem contactar.

quinta-feira, julho 13, 2006

Procurar ajuda (e não encontrar) II

Uma vez que a situação relatada no último post parece ter causado surpresa, permitam-me que dê um pequeno salto na minha história e vos conte um outro episódio semelhante.

Numa das minhas recaídas, que também foram mais que muitas, e já na fase de consumo injectado, fui descoberto pelos meus pais, numa das suas habituais revistas às minhas coisas. Pois bem, nessa altura os apetrechos para preparar o caldo e eu éramos inseparáveis, e foi precisamente isso que os meus pais encontraram no meu quarto. Confrontado com este achado, eu não podia negar que estava de novo numa fase de consumo, e então a única solução era, de novo, disponibilizar-me para mais um tratamento de desintoxicação.

Como nessa altura se falava muito no centro das Taipas, foi para lá que fomos em busca de ajuda, eu e o meu pai.

Lá chegados, dirigi-me ao guichet e relatei o que se passava, ou seja, disse que era um toxicodependente e que estava à procura de ajuda para parar de consumir. O atendimento que se seguiu foi algo de surrealista.

Primeiro queriam saber se eu já tinha ficha e se era seguido por algum médico do centro, como tal não se verificava, foi necessário cumprir toda a burocracia para que eu me inscreve-se. Após essa inscrição veio a boa nova, eu deveria ir para casa e esperar que me convocassem para a primeira consulta.

É preciso que se note que por esta altura já eu estava em plena ressaca, completamente desorientado e sem forças para nada. Mesmo assim, insisti que não me podiam mandar embora sem pelo menos me medicarem para eu poder atravessar aqueles primeiros três ou quatro dias de desabituação, que apesar de serem poucos são os mais dolorosos fisicamente.

Para meu espanto, surgiu então uma menina de bata branca com um copo de plástico onde trazia 2 ou três comprimidos que eu devia tomar ali, após o que deveria ir para casa e então aguardar o contacto para a tal primeira consulta.

Como vêm este era o tipo de ajuda que era dada a quem se predispunha a largar o vício, ou seja nada.

Apesar de ter sido condenado em tribunal a minha pena foi suspensa, e assim nunca fui preso efectivamente, mas muita gente fez a desintoxicação a frio na cadeia, sem qualquer tipo de ajuda química, suportando todas as dores e sem o mínimo de apoio.

Isto é o país que temos. Deixo-vos mais uma dica, durante anos tomei um medicamento chamado BASINAL, um inibidor do efeito dos opiáceos que tem por objectivo auxiliar os toxicodependentes no processo de cura. Cada caixa custava 40 contos, ouviram bem 40 contos e o estado comparticipava com 0$00.

Para quem quer combater os problemas da toxicodependência trabalham bem, não vos parece?

P.S. até hoje ainda espero pela chamada para essa tal consulta.

terça-feira, julho 11, 2006

Procurar ajuda (e não encontrar)

Com o passar do tempo as histórias eram sempre as mesmas, e as necessidades de dinheiro foram aumentando, por outro lado os bens susceptíveis de serem vendidos ou trocados por pó foram diminuindo. Em simultâneo, também a receptividade das pessoas para as minhas histórias e invenções estava cada vez mais reduzida e, assim, cada vez era mais difícil intrujar aqueles que me rodeavam.

Por esta altura ainda me mantinha fiel à prata, no entanto, por mais que eu tenta-se esconder começava a ser difícil manter o meu segredo. Os sinais eram por demais evidentes e cada vez em maior número.

Cada vez comia menos, estava quase esquelético, não tinha uma peça de roupa que não me fica-se larga. Os meu estado ou era demasiado sonolento, por efeito do consumo, ou era de insónia, por falta de consumo, também ao nível do estado de humor me sentia cada vez mais sem paciência para nada, e então a cada pergunta respondia com extrema agressividade e irritava-me por tudo e por nada.

O desespero foi-se apoderando do meu dia a dia, e assim, tomei a decisão de fazer algo por mim, ia procurar ajuda queria largar o vício.

Então, numa consulta de medicina do trabalho, tomei a iniciativa e relatei o que se passava à médica que me consultava. Esta, surpreendida, logo me encaminhou para uma consulta de psicologia, com a psicóloga da empresa, na semana seguinte. Como é óbvio, devido à falta de experiência nestas coisas das curas, saí de lá a pensar que para a semana é que era, para a semana ia deixar o cavalo.

Pois é, o entusiasmo durou isso mesmo, uma semana.

Na consulta de psicologia fiquei a saber que, a psicóloga não me podia prescrever nenhum medicamento, teria de ir a uma consulta com a psiquiatra daí a mais ou menos um mês, e para além disso o melhor era ter o apoio da família, neste caso dos meus pais , coisa que eu não queria. Assim, e até lá, a psicóloga após muita conversa, aconselhou-me a consumir menos, e mandou-me embora, assim sem mais nem menos.

É claro que a primeira coisa que fiz foi ir consumir…

segunda-feira, julho 10, 2006

Droga e manipulação


É com grande satisfação que continuo a receber os vossos comentários e as vossas perguntas, em particular os que chegam de quem, como eu, desceu ao inferno e conseguiu de lá sair. Por esse motivo tomei a liberdade de pegar num dos comentários da Maria H e colocá-lo aqui com maior destaque.

Devo esclarecer que não conheço a Maria, apenas temos um passado que é em tudo semelhante, e um futuro, que eu espero, seja também semelhante, e basta que seja isso mesmo, um futuro, aquilo que há uns anos cheguei a pensar que já não teria.

Aqui fica, então, um comentário que é perfeito a sintetizar o que são as capacidades de manipulação dos toxicodependentes, como algumas vezes tens dito, Maria, tiras-te me as palavras da boca.

Raros são os toxicodependentes que não percorrem este caminho, estas fases todas que são em tudo iguais em qualquer vida toxicodependente. A estrada é a mesma em qualquer cidade, em qualquer época, em qualquer pessoa. O destino é que pode variar conforme os atalhos que vamos tomando ao longo da viagem.
Realmente se cada um de nós tivesse metade da audácia e da persuasão que um toxicodepente consegue ter...Isto, atenção, numa atitude consciente e livre de droga!...Conseguiria fazer da vida um autêntico oceano de felicidade e sucesso! Um drogado consegue fazer crer aos mais incrédulos que a história que está a contar é a mais pura das verdades. Assim um bocadinho como os nossos ministros


Quanto às outras questões que me colocaram, devo dizer que mais há frente todas elas terão resposta, mas posso adiantar que, claro que não consegui esconder tudo durante muito tempo, chegou um momento em que o pesadelo deixou de ser só meu e passou também a ensombrar a vida de todos aqueles que me rodeiavam.

quinta-feira, julho 06, 2006

Ressaca a quanto obrigas

Com o medo das ressacas veio a necessidade urgente de todos os dias conseguir dinheiro em quantidade suficiente para comprar a dose necessária. Como é evidente, essa necessidade, obrigou-me a colocar em acção uma série de esquemas que me permitissem obter o dinheiro que me faltava.

Por esta altura mudei de emprego e fui trabalhar para um empresa onde o contacto com bens e mercadorias que poderiam ser trocadas por cavalo, ou dinheiro, era constante no meu dia a dia.

Assim, para além dos roubos efectuados em casa, começaram os pequenos furtos no trabalho, onde tudo o que fosse passível de ser trocado pelo pó servia para me matar o vício.
Uma outra solução era a manipulação das pessoas que me rodeavam, no sentido de conseguir que, de alguma forma, me dessem ou me emprestassem dinheiro. Um drogado é sempre um exímio manipulador, conseguindo com facilidade inventar histórias ou situações mirabolantes capazes de comover as almas mais empedernidas a fazerem aquilo que queremos.

Assim, nesta fase, em que ninguém, para além dos meus comparsas de consumo, desconfiava sequer da vida que eu levava, a minha necessidade de dinheiro para sustentar o vício lá ia sendo, com maior ou menor dificuldade, satisfeita através destes esquemas.

O pior, é que de dia para dia, os pedidos do corpo iam aumentando e consequentemente o dinheiro necessário acompanhava esta tendência, e como eu estava muito reticente em trocar a prata pela seringa, as quantidades necessárias eram cada vez maiores.

Hoje ao olhar para trás, fico incrédulo com a quantidade de tempo em que me foi possível manter em segredo esta vida de drogado, principalmente junto dos meus pais e da minha namorada, pois os sinais e as pistas eram tantas…

Desde os rolos de prata que misteriosamente começaram a desaparecer num ápice, aos maços de tabaco que nunca tinham a prata que normalmente os acompanham no seu interior, para não falar das constantes indisposições acompanhadas do pingo no nariz, mais a perca repentina de peso, falta de apetite, e claro as coisas e o dinheiro que começaram a desaparecer de casa, enfim se calhar é mais fácil para nós que conheçemos todos os sintomas juntar as peças.