Tenho 44 anos. Em 15 de Dezembro de 1996 dei o meu último caldo. Passaram-se 17 anos... Aqui contei parte da minha história...

terça-feira, novembro 14, 2006

Medo

Durante alguns dias a ilusão de que conseguia, com o chuto, melhor controlar o meu vício, em particular as quantidades consumidas, alimentou a esperança de que desta vez seria eu a dominar e não a heroína.
Mais uma vez, como seria de esperar, não passou de puro engano.
Em pouco tempo estava a consumir de novo a mesma quantidade, e num ritmo assustador que aumentava a cada dia, muito em breve cada compra seria sempre de quartas ou meias gramas, uma vez que os pacotes mal davam para tirar a ressaca.
Passado pouco tempo apercebi-me também que não dava mais para estar à espera de alguém que me picasse, tinha de ser eu a fazê-lo, o corpo não se compadecia com a espera pela disponibilidade e “boa vontade” de algum “colega”, que normalmente pedia algo em troca, nem que fosse o algodão.
O algodão é basicamente um filtro através do qual se faz passar o líquido resultante da dissolução da heroína em água e limão, neste filtro ficam sempre alguns restos de cavalo, até porque normalmente se utilizam mais do que uma vez. Quando não se consegue, por algum motivo, arranjar heroína, recorre-se a eles para enganar a ressaca.
Muitas vezes estes algodões são negociados, havia muita gente no casal a mendigar um algodão, e pelo qual estavam dispostos a fazer tudo. Eu pessoalmente devido à SIDA e ao medo de outras doenças, nunca utilizei nada que tivesse já sido utilizado por outros.
Assim, o que inicialmente parecia a solução para os meus problemas, tornou-se um calvário, sim porque picar sozinho, principalmente as primeiras vezes é muito complicado. É o medo da dor, é o medo dos hematomas, é o medo de entupir a bomba e é principalmente o medo de algo corra mal e se desperdice o cavalo.
Deixo aqui a letra de uma música dos Xutos que descreve bem esta ideia.
Medo

Medo
Eu tenho medo
Medo
Do hematoma
Medo
D'agulha romba
Medo
Eu tenho medo
Do sangue que corre
Da picada aguda
que me enche de ti

Medo
Eu tenho medo
Medo
Do teu poder
Medo
Do teu flash
Medo
Eu tenho medo
Do que me dás

quarta-feira, novembro 08, 2006

O primeiro chuto

O tempo durante o qual apenas fumei é algo que não sei com precisão, sei que foram alguns anos 2, 3, não sei. Foi muito tempo, foi muito dinheiro queimado, sei apenas que foi muito tempo. A noção do tempo foi algo que perdi durante as épocas de consumo, sei apenas que para mim não havia Natal, não havia aniversários, não havia nada, o meu calendário era regido pela necessidade de consumir e logo de arranjar mais e mais dinheiro.
Mas voltando à minha história, é chegado o momento do primeiro chuto.
O tempo disponível para estar sozinho e assim poder consumir, passou a ser muito reduzido após ter revelado a toda a gente que eu era toxicodependente, da mesma forma o esforço para conseguir dinheiro também passou a ser maior, daí comecei a ter dificuldade em satisfazer as necessidades do vício.
Por esta altura, o grupo inicial de amigos com quem me tinha iniciado no consumo estava reduzido a duas pessoas, eu e mais um colega, que por essa altura já picava.
Foi assim, que uma noite deixei de resistir e acedi a experimentar as “maravilhas” do chuto, “aliciado” por esse colega que não se cansava de dizer que enquanto eu fumava uma chinesa estava desperdiçar cavalo, não aproveitava a moca como deveria e para além disso a quantidade necessária era menor.
Este último argumento convenceu-me.
Então lá fomos experimentar com apenas meio pacote, já que eu tinha muito medo de possíveis overdoses.
Quem me picou foi ele, e apesar de eu nunca ter tido grandes veias correu bem, já que apanhou a veia à primeira.
A sensação que se seguiu foi algo que não consigo explicar.
O efeito foi instantâneo, mal o líquido começou a entrar na corrente sanguínea, fui invadido por uma onda de calor, o prazer que a chinesa me dava apareceu assim de repente e de uma forma brutal e inesperada, foi um flash, uma coisa inexplicável.
Tornou-se para mim evidente que não mais viria a fumar, não havia comparação possível, de facto uma coisa não tinha nada a ver com a outra, não sei explicar, os efeitos são imediatos e muito mais fortes e naquela altura mais duradouros.

segunda-feira, novembro 06, 2006

De volta ao consumo, ou a famosa recaída.

Esta sensação de liberdade, esta alegria de todos os dias acordar e ter a sensação de que o sol estava de dia par dia mais bonito teve uma curta duração.
Durante uns tempos estive quase que prisioneiro, não podia sair de casa sozinho, não podia ficar em casa sozinho, não podia ter dinheiro, não podia nada.
No entanto, nenhum de nós (pais, namorada, amigos não consumidores e eu próprio) sabia quais os passos a dar para que tudo não tivesse sido em vão. A minha psicóloga apenas me mandou frequentar as reuniões de NA, e passado pouco tempo retirou-me toda a medicação. Afinal a cura tinha corrido tão bem que eu nem precisava de inibidores de opiáceos. Assim, sem saber muito bem o que eram as reuniões lá aceitei ir.
A primeira vez foi na Praça de Londres, e lembro-me bem da desilusão que aquilo foi para mim, afinal eu estava curado, já não consumia há algumas semanas, e aquele pessoal e a sua conversa eram para mim muito esquisitos. Depois eles eram quase todos agarrados que haviam picado e eu não, eu só tinha fumado e para além disso, eu já estava curado. Como é óbvio não voltei a pôr lá os pés.
A falta de objectivos e actividades foi fatal, passado pouco tempo comecei de novo a aperfeiçoar as minhas capacidades de manipulador e foi fácil, muito fácil, conseguir arranjar dinheiro e voltar a consumir.
Não me perguntem se o sofrimento da ressaca não bastava para eu não querer voltar, porque a resposta é só uma, eu voltei, e voltei para aumentar o meu consumo.
Lembro-me que da primeira vez em que retomei o consumo, na minha cabeça matraqueava uma ideia – “é só hoje, é só para matar saudades, tu consegues controlar”
Mas foi mentira, foi naquele dia, e em todos os outros que se lhe seguiram, durante não sei quanto tempo.
Naquela altura, o grau de dificuldade para enganar todos os que me rodeavam aumentou, pois agora estavam todos muito mais atentos, mas por outro lado toda a gente acreditava na sua ingenuidade que eu estava curado, ninguém conhecia o enorme poder da heroína.
E eu lá ia, suportando o meu vício com mentiras e pequenos esquemas.
De dia para dia o corpo pedia mais, e a resistência que eu tinha à seringa foi finalmente quebrada.