Medo
Durante alguns dias a ilusão de que conseguia, com o chuto, melhor controlar o meu vício, em particular as quantidades consumidas, alimentou a esperança de que desta vez seria eu a dominar e não a heroína.
Mais uma vez, como seria de esperar, não passou de puro engano.
Em pouco tempo estava a consumir de novo a mesma quantidade, e num ritmo assustador que aumentava a cada dia, muito em breve cada compra seria sempre de quartas ou meias gramas, uma vez que os pacotes mal davam para tirar a ressaca.
Passado pouco tempo apercebi-me também que não dava mais para estar à espera de alguém que me picasse, tinha de ser eu a fazê-lo, o corpo não se compadecia com a espera pela disponibilidade e “boa vontade” de algum “colega”, que normalmente pedia algo em troca, nem que fosse o algodão.
O algodão é basicamente um filtro através do qual se faz passar o líquido resultante da dissolução da heroína em água e limão, neste filtro ficam sempre alguns restos de cavalo, até porque normalmente se utilizam mais do que uma vez. Quando não se consegue, por algum motivo, arranjar heroína, recorre-se a eles para enganar a ressaca.
Muitas vezes estes algodões são negociados, havia muita gente no casal a mendigar um algodão, e pelo qual estavam dispostos a fazer tudo. Eu pessoalmente devido à SIDA e ao medo de outras doenças, nunca utilizei nada que tivesse já sido utilizado por outros.
Assim, o que inicialmente parecia a solução para os meus problemas, tornou-se um calvário, sim porque picar sozinho, principalmente as primeiras vezes é muito complicado. É o medo da dor, é o medo dos hematomas, é o medo de entupir a bomba e é principalmente o medo de algo corra mal e se desperdice o cavalo.
Deixo aqui a letra de uma música dos Xutos que descreve bem esta ideia.
“Medo
Medo
Eu tenho medo
Medo
Do hematoma
Medo
D'agulha romba
Medo
Eu tenho medo
Do sangue que corre
Da picada aguda
que me enche de ti
Medo
Eu tenho medo
Medo
Do teu poder
Medo
Do teu flash
Medo
Eu tenho medo
Do que me dás”